sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Líbia: A felicidade democrática

E a Líbia?
Já ninguém fala dela?

Esquisito, afinal é um País que saiu das trevas para aceder ao Paraíso Democrático, deveria ser um exemplo para todos. Para o Egipto, por exemplo, ou a Síria. Quem pode não gostar da ideia de abandonar as trevas?

No entanto, ontem os diários do mundo falaram da Líbia. Nada de grave, que fique claro: foi raptado o Primeiro Ministro, coisas que acontecem num País feliz. Mas o resto? Vamos espreitar.

Como sabemos, em 2011, quando Muammar Khadafi recusou-se deixar o governo da Líbia, a Administração de Obama escondeu-se atrás das saias francesas e lançou uma feroz campanha de bombardeio, tudo em prol do bem dos cidadãos. Além disso, foi criada uma No-Fly Zone, uma zona de exclusão aérea para apoiar os combatentes democráticos, entre os quais militava Al-Qaeda. E nós sabemos que a democracia sempre esteve no topo da lista das prioridades de Al-Qaeda.

Tratou-se, como é óbvio, da invasão militar dum País soberano, algo considerado crime pelo direito internacional: mas sabemos também que em alguns casos o direito internacional prevê excepções. Quais casos? Em todos os casos nos quais os Estados Unidos estejam envolvidos numa guerra de agressão. E a razão é simples: Washington exporta o Bem Supremo, a Democracia, e isso justifica tudo.

Também há excepção nos casos em que o País agredido não deseje a Democracia? Sobretudo nestes casos: o simples facto de recusar a Democracia é já por si um sinal de maldade (nota: também aqui o direito internacional prevê excepções. É o caso da Arábia Saudita, dos vários Emirados...mas esta é uma outra história e bem pouco interessante).

Após meses de sangue, a Cruzada acabou e a Líbia entrou na lista dos Países Justos & Bons.
Começou o ciclo da felicidade. Democrática, óbvio.


O petróleo

Imediatamente após a guerra, os meios de comunicação ocidentais saudaram o facto das instalações de petróleo não terem sido danificadas pelos bombardeios (que atingiram a população).

Não pense mal o Leitor: no Ocidente a maior preocupação era o bem estar dos Líbios, não o fornecimento de petróleo e gás. Assim, a produção do ouro negro atingiu rapidamente os 1.4 milhões de barris/dia.

Pouco depois, os guardas armados contratados pelo governo provisório de Tripoli rebelaram-se e tomaram o controle dos terminais petrolíferos da região Leste, os mesmos que deveriam ter protegido. Esta era a zona onde era extraída a maior parte do petróleo da Líbia, perto de Benghazi, e onde os gasodutos recebiam os navios petroleiros para a exportação.

Obviamente, quando o governo perdeu o controle da produção e dos equipamentos, as exportações registaram um declínio acentuado.

Em seguida, outro grupo tribal armado assumiu o controle de dois campos de petróleo no Sul, bloqueando o fluxo para os terminais do Norte-Oeste. Os ocupantes tribais pediam mais salários e entraram em greve para exigir melhores condições de trabalho e o fim da corrupção.

O resultado final é que hoje a Líbia bombeia apenas cerca de 150 mil barris/dia contra uma capacidade máxima estimada em 1.6 milhões de barris/dia. E as exportações caíram para 80 mil barris/dia.

Um problema grave? Nada disso. Come dizem em Tripoli com o sorriso nos lábios: "Ficámos como mortos de fome, mas somos democráticos".
E é isso que conta.


Milícias armadas vs. Irmandade Muçulmana

A Líbia é um Estado artificial, como grande parte do Oriente Médio e da África. Foi desenhada pela Itália durante o período colonial, no final do XIX século. Não que antes não existissem os Líbios, pois existiam, mas não eram cidadãos da Líbia: eram tribos com tradições seculares e a mesma região era governada por consenso entre os grupos tribais.

Khadafi, por exemplo, foi escolhido após um processo de votação pelos anciãos das tribos, algo que pode demorar até 15 anos. Quando foi assassinado, a Nato impôs as regras do Conselho Nacional de Transição (CNT), dominado pela Irmandade Muçulmana.

Depois, no último mês de Agosto, uma nova Assembleia foi eleita, mais uma vez dominada pela Irmandade, tal como no Egipto e na Tunísia. Parecia bom em teoria, mas a realidade é que bandos de pessoas armadas (jihdaistas, estrangeiros, Al-Qaeda, por exemplo) realizam bombardeios diários em todo o País para obter o controle local: até a capital, Tripoli, tem inúmeros grupos armados que controlam os vários bairros.

O panorama muda: o caminho é aquele da luta armada entre as milícias tribais locais, grupos radicais, terroristas internacionais e a irmandade que controla o governo central.

Os líderes das províncias de Cirenaica e do Fezzan levam em consideração a ruptura com Tripoli e as milícias rebeldes estão mobilizadas em todo o País.

Um problema grave? Nada disso. Como dizem em Tripoli com o sorriso nos lábios enquanto retiram da roupa os fragmentos das granadas: "Ficámos com a Líbia em pedaços e o governo controla cada vez menos a situação: mas somos democráticos".


O governo em pedaços

Nuri Abu Sahmain, irmão muçulmano e recém-eleito presidente do Congresso, tem convocado as milícias aliadas na capital, para tentar evitar um golpe de Estado, uma acção que a oposição vê por sua vez como um golpe da Irmandade.

O principal partido da oposição, a força de direita da Aliança Nacional, como resultado deixou o Congresso, juntamente com vários partidos étnicos mais pequenos, deixando o Partido da Justiça e Construção da Irmandade no topo dum governo em ruína. O Congresso essencialmente colapsou, como afirmou recentemente um diplomata em Tripoli.

A sábia Administração Obama tem promovido a mudança de regime no mundo muçulmano, no Egipto, na Tunísia, na Síria, tudo em favor da obscura Irmandade Muçulmana, numa estratégia de longo prazo para o controle de boa parte do mundo muçulmano, desde o Afeganistão até a Líbia.

Mas esta estratégia choca com o golpe militar no Egipto, apoiado pelos sauditas, no passado mês de Julho: algo não corre bem e parte do mundo muçulmano, mesmo que tradicionalmente filo-americano, rejeita os planos de Washington.

Um problema grave? Nada disso. Como dizem em Tripoli com o sorriso nos lábios enquanto tentam evitar as balas perdidas: "O que importa ter um governo? O que conta é ser felizmente democráticos".


Violência

A violência aumenta em todo o País e parece, por enquanto, não existir maneira para conte-la. O ministro do Interior, Muhammad al- Qalifa Shaiq, renunciou ao cargo em Agosto.

Entretanto, cerca de 500 presos na instituição penitenciária de Tripoli entraram em greve de fome para protestar contra os dois anos de detenção sem acusação: um problema resolvido quando o governo ordenou ao Comité Supremo da Segurança para restaurar a ordem e os milicianos começaram a disparar contra os presos através das grades.

Tudo isso após 1.200 presos terem fugido em Julho, após um motim em Benghazi.
E os Berberes, cuja milícia tinha atacado Tripoli em 2011, ocuparam temporariamente o parlamento na capital.

Como explicar esta violência toda na Líbia? Onde os milicianos, radicais ou simples fora-de lei encontram as armas?

A resposta é simples: na altura da luta contra o mau Khadafi, Estados Unidos e Nato decidiram não enviar tropas no terreno e, para ganhar os confrontos, entregar milhares de armas de todo o tipo a qualquer "rebelde" ou alegado tal (na prática: qualquer pessoa que se declarasse inimiga do governo). As armas ainda estão lá, todas, e a Líbia hoje é descrita como "o maior bazar de armas do mundo", onde qualquer pessoa pode comprar qualquer arma moderna "Made in Nato".

Isso criou um clima de violência sem possibilidade de controlo por parte dum governo fraco e de forças policiais escassas e mal treinadas. A maior parte dos estrangeiros já abandonaram Benghazi, a segunda cidade do País, onde em Setembro do ano passado foi morto o embaixador dos Estados Unidos.

E o promotor militar da Líbia, o coronel Ali al- Yusif Asaifar, encarregado de investigar os assassinatos de jornalistas, políticos e militares, foi por sua vez assassinado com uma bomba no seu carro, no dia 29 de Agosto.


Felicidade é...

As perspectivas são tristes, enquanto a ilegalidade se estende. Qajam Suleiman, um membro da Comissão Parlamentar de Energia, disse à Bloomberg:

O governo utiliza as suas reservas. Se a situação não melhorar, não será capaz de pagar os salários até o final do ano.
Por último, o rapto do Primeiro Minstro, Ali Zeidan, libertado após poucas horas. Autores do crime foram os membros da Câmara dos Revolucionários da Líbia, uma milícia que o mesmo governo tinha contratado para garantir a segurança em Tripoli.
A tal Câmara esclareceu que o rapto foi uma acção demonstrativa para protestar contra a captura de Abu Anas Al Libi,alegado terrorista de Al-Qaeda.

Como é possível constatar, não há problemas reais na Líbia.
Pode-se falar de leves percalços, coisas normais num País que foi bombardeado, entregue ao caos total; onde reinam pequenos grupos armados, divididos por questões politicas, religiosas, de poder ou simplesmente criminosas; onde a violência é a regra; onde não existe um poder central capaz de indicar uma saída; onde as velhas e seculares estruturas foram arrasadas; onde dominam só o medo e a certeza de terem sido abandonados.

Nada que o Iraque, por exemplo, não tenha já experimentado.
É isso que conforta os Líbios: olhar para o Iraque e pensar "aquele é o nosso presente mas também o nosso futuro". Basta pouco para ser felizes.

Referência: Informação Incorrecta
Fontes: Corriere della Sera, Parallels, The Guardian, The Independent, Global Reserach

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